O QUE UMA DAS MAIORES JOGADORAS DE SINUCA DO BRASIL ENSINA SOBRE GESTÃO

Quando um leigo vê Silvia Taioli em ação, parece que, em vez de sinuca, ela está fazendo um truque de mágica. Ou telepatia. Ela enfileira as bolas na mesa e anuncia em que lugar vai encaçapar qual bola e onde a bola branca vai parar. Cola o corpo na mesa, dá impulso preciso no taco e, pronto: a descrição vira realidade. Para ela, não foi a mágica, mas os milhões de tacadas em treinos e torneios, durante 17 anos de carreira. Uma vez campeã brasileira, quatro vezes paulista, Silvia é não só uma das “sinuqueiras” mais premiadas do país, mas também referência no assunto. Quando famosos querem uma mesa para colocar em casa, é o telefone dela que toca. A sinuca é uma das paixões informais do brasileiro – quem nunca se arriscou a dar suas tacadas no clube ou num boteco? A paixão de Silvia, porém, começou em casa, estimulada pelo pai, um jogador tão fissurado que promovia campeonatos com direito a troféu. Na adolescência, enquanto as colegas iam a bailinhos, Silvia queria conhecer salões de sinuca, mesmo que fosse longe de Interlagos, onde sempre viveu.

Por mais prodígio que fosse, a sinuca seria apenas uma diversão não fosse “seu” Fantasia, um senhor rodado nos salões, que virou o mentor de Silvia quando ela tinha 23 anos. Por cinco anos, os dois iam juntos a todos os lugares e ela aprendia as lições avançadas. Só aí Silvia teve segurança para largar a engenharia química (já tinha se formado na faculdade), vender a casa de frios que abrira com o ex-marido e assumir a sinuca. Em 1998, um ano após começar sua carreira, foi convidada a participar do seu primeiro Campeonato Paulista. Começou ali uma rotina de torneios pelo Brasil que resultou num método, resumido a uma palavra: planejamento.

Da arte de olhar adiante
Com o torneio marcado, pensa-se em longo prazo: oito meses antes, Silvia treina três horas por dia, na maioria das vezes sozinha. Nesse período, lapida os movimentos ensinados por Fantasia, corrige erros de posicionamento e simula possíveis situações de apuro. Começa com a postura: usa-se bem mais que olhos e braços para jogar sinuca. Para bater na bola corretamente, o corpo todo precisa encontrar a posição adequada, o que significa jogar o peso no joelho direito, colar o queixo no taco, formar a “ponte” com a mão esquerda a um palmo da bola e segurar o taco com o braço direito perpendicular a ele. O único movimento é do antebraço, fazendo um pêndulo em direção à bola branca. Quem mexe o braço inteiro periga errar a bola (a clássica espanada) ou rasgar o feltro.

Para treinar a técnica, não há segredo: repetições exaustivas, de preferência num ambiente iluminado e silencioso – nada de botequins enfumaçados ou casas de sinuca com som no talo. Silvia espalha as bolas na mesa em posições específicas e se desafia. “Repito 500 vezes”, diz. Um exercício comum é simular a situação de jogo na qual é preciso “matar” uma bola e deixar a bola branca já preparada para encaçapar a seguinte. Outro é sair de uma enrascada, como a “sinuca de bico”. Nessa situação, precisa-se tirar uma bola colada na esquina da mesa. Para acertá-la – e sair da sinuca de bico – é preciso fazer uma tabela em algum ponto livre, no lado oposto ao que está a bola. A chance da tacada espirrar é grande. O jogador precisa de força e calcular o ângulo certo para fazer a tabela na outra lateral da mesa. Ter sorte ajuda? Na sinuca, diz ela, resoluta, não existe sorte.

Não parece, mas a sinuca é um esporte brutalmente psicológico. De nada vale ter a melhor técnica se, no jogo, a pressão esmaga o jogador

Muito do segredo da direção aonde a bola vai está no lugar em que o jogador bate nela. Silvia tira da bolsa uma bola branca pintada com letras e círculos, um dos poucos apetrechos que fazem a diferença na sinuca. No surfe, a escolha da prancha é essencial. Na sinuca, quase nada. Padronizados, os tacos mudam tão pouco que não oferecem grandes diferenciais. A bola rabiscada ajuda, indicando onde o jogador deve bater caso queira efeito ou direção. Ela precisa atingir o alvo e voltar ao ponto inicial? Mire o taco na parte de baixo. Precisa ir reto? Dê com força no centro.

Toda essa repetição trabalha por um objetivo: controlar a bola branca. “Quando você tem o domínio da branca, acabou para o outro”, diz. Com as rédeas, o jogador consegue encadear as próximas jogadas, colocar o rival em apuros e até cadenciar o jogo. Se você está na frente e quer forçar o erro do adversário, afaste a bola branca o máximo da próxima bola a ser matada.

Há ainda outro treino que não envolve o corpo. No bate-rebate da bola nas  laterais emborrachadas, todo jogador precisa calcular ângulos, uma tarefa fácil para a engenheira Silvia. Depois das horas de matemática na faculdade, olhar a mesa e imaginar a trajetória da bola não é problema algum. Além do físico, o jogador de sinuca tem de estar também com a física – ou a matemática – em dia.

O jogo exige muito treino, giz no taco e cálculo exato dos ângulos.  Ponto para a engenheira  Silvia (Foto: Ana Carolina Negri)O JOGO EXIGE MUITO TREINO, GIZ NO TACO E CÁLCULO EXATO DOS ÂNGULOS. PONTO PARA A ENGENHEIRA SILVIA (FOTO: ANA CAROLINA NEGRI)

Plano A, B, C, D...
Com o jogo próximo, é hora de pensar em curto prazo: na noite anterior, Silvia tenta antever todas as possíveis jogadas. “Tenho plano A, B, C, D…”, afirma. O problema é administrar a dose: ela pensa tanto que, às vezes, a análise vira fixação e atrapalha o jogo. Chegar antes da partida também é obrigatório. Como as mesas geralmente são novas, o feltro intocado faz a bola correr rápido e é preciso se acostumar com a velocidade maior. O planejamento não para no jogo. Tal qual o xadrex, os bons jogadores de sinuca dão uma tacada já imaginando dez jogadas adiante. “Ver o jogo” tão adiantado permite colocar os iniciantes em armadilhas, como posicionar a bola branca de forma a indicar uma possível jogada mais fácil, tirando a atenção de outra mais importante.

Por mais que a ação se passe com as bolas correndo no pano verde, a sinuca, defende Silvia, é um jogo extremamente psicológico. Ter o cotovelo mais malhado, a técnica mais afiada ou ser sucessor direto de Arquimedes de nada adiantam se o jogador implode frente à pressão.  “A hora em que você chega na mesa, dá uma tremedeira”, diz. Ela aprendeu da pior maneira. Durante o Brasileiro em 2003, avançou até a final e dominava a rival. Era questão de minutos até o título: faltava ganhar só mais uma partida. Até que o silêncio absoluto da sala foi quebrado pelos locutores, explicando aos ouvintes as regras de outro jogo. Com um detalhe: a explicação estava errada. No ímpeto de repassar as instruções corretas, Silvia perdeu o foco e, consequentemente, o torneio. A concentração também rende uma expressão limpa, incapaz de entregar seu estado emocional. Se o oponente sabe ler os sinais de um desesperado, ganha fácil. É só Silvia ver uma veia saltada no pescoço ou a mão tremendo ao tocar no feltro que sabe: é hora de ser mais agressiva.

O segredo da sinuca? “Quando você tem o domínio da [bola] branca, acabou para o outro”,  diz a campeã (Foto: Ana Carolina Negri)O SEGREDO DA SINUCA? “QUANDO VOCÊ TEM O DOMÍNIO DA [BOLA] BRANCA, ACABOU PARA O OUTRO”, DIZ A CAMPEÃ (FOTO: ANA CAROLINA NEGRI)

Tudo em um
No Reino Unido, celeiro de campeões, quando a criança mostra potencial para a sinuca, os pais correm para inscrevê-la em academias especializadas. Lá, ela passa meses treinando e melhorando o físico e o psicológico. No Brasil, a realidade é oposta. Além de competir e dar aulas, Silvia é sua própria equipe: ela se treina, levanta dinheiro ministrando clínicas e revendendo equipamentos, reúne-se com empresas em busca de patrocínio. O setor tem tão pouco dinheiro que se paga para competir, o que forçou Silvia a abandonar campeonatos.

Sua situação é ainda mais difícil por um detalhe: o de ser mulher. Nos salões de sinuca, sempre ouviu todos os tipos de galanteios, a imensa maioria de uma grosseria impublicável. Quando o ambiente é desfavorável é bom ter uma armadura, e Silvia se tornou desconfiada profissional, até meio bruta. “A mulher tem de trabalhar mais, se esforçar mais para chegar ao mesmo nível do homem. Isto me deixava louca”, afirma, tocando num assunto tão sensível que ela se emociona no meio da entrevista. A desvantagem feminina (não só na sinuca) não sumiu, mas longe estão os dias nos quais Silvia era vista como uma turista no esporte. A reputação entre os profissionais parece ter chegado ao ambiente em que milhões de brasileiros praticam, sem todo o cuidado descrito aqui, a sinuca. Um dia, esperando um torneio, entrou num bar e, ao ver alguns homens na mesa, se intrometeu no jogo para surpreender os jogadores. Assim que pegou o taco, porém, o plano naufragou: “Você não é a Silvia da sinuca?”. 


Ponte é como se chama o apoio feito pela mão esquerda (ou direita, para canhotos) na qual o taco vai se apoiar para acertar a bola branca)

 

Fonte: Revista Época

 
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